Por Cassio Politi e André Rosa
O Podcast-se, o podcast do Comunique-se, chega à sua edição número 100. A primeira edição foi ao ar no dia 26 de julho de 2017, uma quarta-feira. Permaneceu com edições semanais até dezembro de 2018. Porque deu certo, na virada do ano, tornou-se bissemanal. E tem sido um daqueles conteúdos que produzimos com grau máximo de prazer. Porque podcast é prazeroso para quem ouve e para quem faz.
Decidimos fazer uma edição especial no 100º episódio. Contamos a história do podcasting, que oficialmente nasceu em meados dos anos 2000. Olhando mais de perto, é possível enxergar que a história começa mais atrás, nos anos 1980. É disso que trata este post. Usamos uma série de fontes na web, devidamente listadas no final.
Deixamos, ainda, o episódio #100 do Podcast-se disponível abaixo. Vale a pena ouvir.
Precursores
Na década de 1980, muito antes de a internet invadir a vida das pessoas, já existia nos Estados Unidos o serviço chamado RCS (Radio Computing Services). Basicamente, ele fornecia software de música e conversação para emissoras de rádio, no formato MIDI. Era um serviço restrito, que, se não permitia que qualquer pessoa criasse e distribuísse seu conteúdo em áudio, inovava por colocar a mídia auditiva no formato digital.
Foi usando o mesmo princípio de áudio em arquivos digitais que, em 1993, o profissional de tecnologia americano Carl Malamud criou um talk show inovador. Batizado de ”, o programa de entrevistas não era distribuído por rádio, mas em arquivos de computador. Era preciso instalar o arquivo num PC e arrumar um jeito de ouvi-lo apesar da pouca tecnologia disponível na época.
Naqueles tempos, a maioria de nós usava computadores de tela preta com letras verdes desprovidos de um tocador de música. Os mais afortunados tinham monitor colorido e os supertecnológicos usavam um tal de Windows. Rodar um áudio não era para qualquer um, até porque o “kit multimídia” viria a se popularizar muito tempo depois. Ao menos no Brasil, isso aconteceu na segunda metade dos anos 1990, época em que nos atualizávamos com as novidades em feiras como a Fenasoft, em São Paulo.
De qualquer forma, Malamud já explicava aos usuários que conseguissem ouvi-lo que a grande vantagem daquele formato era o fato de o usuário poder pausar o áudio quando bem entendesse.
Esta foi a experiência offline mais próxima do que hoje conhecemos como podcast. Quem usava um PC 386 ou um 486, com Windows 3.1 e monitor VGA de 256 cores, certamente vai entender como era desafiador fazer algo parecido.
Na primeira metade dos anos 1990, o gravador digital nativo do Windows capturava e reproduzia arquivos brutos, no formato waveform — o popular wav. Sem compressão, alguns segundos de áudio oupavam muitos megabytes. Não cabiam em um disquete, cuja capacidade de armazenamento era de 1,44 MB. Para sair dos discos rígidos e circular pela recém-chegada World Wide Web, era preciso codificar o som por meio de algum compactador, sem perder muito a qualidade. Alguns formatos ficaram muito populares nesse período, como os arquivos do Windows Media Player, em formato WMA, e o Real Audio, responsável pela estreia de algumas emissoras de rádio na internet.
Mas nenhuma tecnologia de codificação de áudio teve tanto impacto quanto o MP3.
Para resumir o tecniquês: é um codec de áudio com a primeira versão de seus padrões lançados oficialmente em 1993. Foi um sucesso, que coincidiu com uma combinação explosiva de softwares: o Winamp, um dos mais populares players e organizadores de músicas, lançado em 1997, e o Napster, de 1999, que permitia a troca de arquivos entre computadores, além de protagonizar o primeiro grande episódio jurídico entre a internet e a indústria fonográfica.
É preciso considerar que, desde o nascimento da web até a virada do século, a internet já estava presente na vida das pessoas. O número de pessoas com acesso à rede já alcançava a casa dos 500 milhões em âmbito mundial (hoje são 4,3 bi). Embora o streaming ainda ficasse restrito a algumas iniciativas, computadores com Winamp e Napster já decretavam: dificilmente ouviríamos música e informação do mesmo jeito que fora até ali.
Enquanto o MP3 se espalhava, outras iniciativas incorporavam funcionalidades que remetem ao que os podcasts usam atualmente. Em 2001, mesmo ano do lançamento do iPod pela Apple, a Applian Technologies, de San Francisco, lançou um gravador de áudio para PCs. O gravador se chamava Replay Radio. Inspirado por funcionalidades do TiVo (de música), o Replay Radio não apenas permitia gravar áudio como também acessava outros servidores, de onde se baixavam arquivos de áudio. Uma ideia similar ao peer-to-peer, muito popular no início do milênio.
Um dos programas que faziam sucesso naquela época era o Web Talk Guys, de autoria de Rob e Dana Greenlee. No Podcast-se #100, você ouve um trechinho desse programa, que ficou no ar até 2006. É uma pena que não tenha continuado a existir até hoje. Seria um caso de programa que fez sucesso numa mídia antes mesmo de ela existir.
Nasce o conceito
Hoje os agregadores facilitam a vida dos ouvintes. Os smartphones da Apple já vêm com programas nativos. Muitos apps oferecem o mesmo serviço e, em 2018, o Google e o Spotify entraram com força nesse segmento. Essencialmente, o agregador permite que o usuário escolha os programas que quer acompanhar e baixe automaticamente os novos episódios, especialmente em celulares.
Esse conceito pode parecer supermoderno, mas o fato é que ele surgiu em setembro de 2000, quando a iGo lançou o programa MyAudio2Go. Ele era basicamente um agregador com as funcionalidades que conhecemos hoje, mas feito para PCs com conexões à internet lentas.
Quem um dia usou Napster se lembra de deixar o computador virando a noite para baixar músicas de modestos 4 MB. O MyAudio2Go fazia a mesma coisa, com a mesma lentidão, mas os arquivos de MP3 não eram de música, e sim notícias de esportes, entretenimento, clima e cultura. A ideia era visionária, mas não era sustentável. Pouco mais de um ano após o lançamento, a i2Go, criadora do programa, quebrou junto com muitas outras empresas pontocom quando a bolha da internet estourou.
Surge o RSS
Por sorte, naquela mesma época, outras iniciativas estavam paralelamente em andamento. Em outubro de 2000, uma ideia do empreendedor franco-americano Tristan Louis acabou sendo desenvolvida pelo programador e empresário americano Dave Winer — e pouco depois por seu colega e conterrâneo Adam Curry. Os blogs estavam começando a estourar e, ouvindo a demanda de clientes e usuários, eles decidiram criar um recurso inicialmente pensado para blogs em áudio. Assim, surgiu o RSS, que acabou sendo usado muito além da proposta original.
A ideia seria concretizada em junho de 2003, quando a aplicação Ed Radio foi lançada com a funcionalidade de RSS muito próxima de como a conhecemos hoje. A Ed Radio rastreava continuamente os feeds RSS relacionados a arquivos MP3 e os armazenava num único registro. Dessa forma, o usuário agregava as atualizações de diferentes programas de MP3 num só lugar. É daí que vem o conceito de agregador.
A partir daí, muitas iniciativas envolvendo RSS foram levadas adiante, todas seguindo o conceito da distribuição que parte de feeds e vai para agregadores. Inevitavelmente, houve uma evolução na tecnologia empregada e nas funcionalidades oferecidas.
Em outubro de 2003, Winer organizou um evento sobre blog na Universidade de Harvard e distribuiu CDs entre os participantes contendo arquivos de áudio. Seu objetivo era mostrar a qualidade e a capacidade de crescimento que aquele formato, então chamado de “audioblogging” poderia ganhar.
No mesmo evento, Curry publicou em seu blog um tutorial sobre como fazer com que um arquivo de MP3 fosse gravado via RSS em um iPod, o dispositivo que a Apple havia lançado dois anos antes e que ganhava cada vez mais usuários, especialmente nos Estados Unidos.
Uma tendência estava lançada. A ideia de publicar um arquivo de MP3 e lançá-lo via RSS para dentro de players de áudio — entre os quais, o badalado iPod — gerava uma oportunidade de mercado. Assim, surgiram serviços promissores a partir de 2004.
O primeiro a fazer sucesso foi o iPodderX, que precisou mudar de nome para Transistr porque a patente da marca iPod já pertencia à Apple. Em seguida, vieram o iPodder (que virou Juice) e CastPodder. Outro que fez sucesso foi o Liberated Syndication (Libsyn), lançado em outubro de 2004.
Perceba que, até ali, ninguém ainda fazia menção ao nome “podcast”. A criação desse termo é ainda hoje atribuída ao jornalista inglês Ben Hammersley, que, em fevereiro de 2004, sugeriu a nomenclatura num artigo para o jornal britânico The Guardian. O próprio Hammersley não perdeu tempo e registrou para si o domínio podcast.net. A sugestão agradou a Winer, Curry e outras lideranças da época nessa seara.
Consultando o Google Trends, é possível verificar que o termo “podcast” começou a ser pesquisado em meados de 2004, crescendo vertiginosamente por pouco mais de um ano e atingindo o primeiro grande pico em janeiro de 2006.
A curva de crescimento em 2005 tem explicação. Ao lançar a versão 4.9 do iTunes, em junho daquele ano, a Apple anunciou que, além de músicas, os usuários poderiam organizar também seus podcasts no próprio software.
De quebra, adicionou funcionalidades ligadas ao podcast ao GarageBand e ao QuickTime Pro. Como parte de sua cultura, lançou também um formato próprio de arquivo de áudio, o MPEG 4 Audio (m4a) como um substituto do mp3 para ser usado exclusivamente em suas plataformas.
Soma-se a isso o fato de que, naquele mesmo ano, o Yahoo! lançou um diretório de podcast que permitia que usuários se inscrevessem em programas e baixassem episódios. O serviço ficou no ar por dois anos, até outubro de 2007. Mas, enquanto esteve vivo, contribuiu para que mais pessoas descobrissem a onda que se formava em torno do podcast.
Curiosamente, no Brasil, a notícia dos podcasts acompanhou a onda dos Estados Unidos. O primeiro pico de buscas no Google também se deu em 2006, o que não é difícil entender. Quando a Apple anunciou o podcast no iTunes, ela o fez em âmbito mundial.
Mais avançados tecnicamente que o Brasil, os Estados Unidos tiveram um desenvolvimento mais rápido em relação aos podcasts. Logo surgiram programas ainda hoje populares. Curry já tinha um podcast famoso na época, o Quit Your Day Job. Outro badalado expert em tecnologia, Leo Laporte, seguiu o mesmo caminho e lançou seu podcast em abril de 2005, o Later This Week.
No Brasil, começaram a surgir os primeiros projetos também. O Café Brasil, lançado em 2005 como programa de rádio, se tornou podcast em 2006 e hoje figura entre os mais ouvidos do País. Mas eram projetos isolados, que só conseguiram se fortalecer muitos anos depois, quando o público brasileiro entendeu melhor o que eram podcasts.
A nossa realidade era diferente da americana em meados da década de 2000. Basta observar que, em maio de 2005, antes mesmo de o iTunes 4.9 ser lançado, o livro Podcasting: Do-it-yourself Guide by Todd Cochrane já era vendido por lá.
Uma linha do tempo ajuda a contar a história dos podcasts nos últimos 14 anos.
- Em julho de 2005, o então presidente George W. Bush lançou um podcast semanal.
- Em dezembro de 2005, o termo “podcast” apareceu pela primeira vez no dicionário Oxford da língua inglesa.
- Em janeiro de 2006, Steve Jobs demonstrou, em uma de suas clássicas apresentações, como fazer um podcast usando o GarageBand. No vídeo abaixo, o fundador da Apple explica as novidades do GarageBand entre o minuto 38’08” e o 43’58”.
- Em 2007, Ricky Gervais conseguiu entrar no Guinness, o livro dos recordes, pelo maior número de downloads de um episódio: 261.670.
- Em 2009, a Edison Research começou a fazer pesquisas de audiência de podcasts nos Estados Unidos.
- Em 2011, foi a vez de Adam Carolla entrar no Guinness, desta vez com números bem mais expressivos: 59.574.843 downloads únicos entre 2009 e 2011.
- Em junho de 2013, a Apple anunciou que 1 bilhão de pessoas ouviam podcasts usando seu aplicativo nativo para essa finalidade.
- Em 2018, o Google lançou o Google Podcasts e o Spotify passou a abrigar essa mídia. Ambos rapidamente ganharam popularidade e são apontados como prováveis agregadores mais relevantes num futuro próximo.
Fontes
- https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_podcasting
- https://en.wikipedia.org/wiki/Radio_Computing_Services
- https://www.internetworldstats.com/emarketing.htm
- https://internationalpodcastday.com/podcasting-history/
- https://internationalpodcastday.com/podcasting-history/
- https://workforcepods.com/2018/03/10-key-factors-in-the-history-of-podcasting/
- https://www.tracto.com.br/podcasts-no-spotify/
- https://archive.org/details/RTFM-Geek-930615
- http://www.radiosurvivor.com/2018/09/17/internet-radio-is-older-than-you-think/
- http://www.radiosurvivor.com/2018/09/17/internet-radio-is-older-than-you-think/
- https://archive.org/search.php?query=creator%3A%22Internet+Talk+Radio%22