Por André Rosa e Cassio Politi
Há motivo para se ter medo do mal que o conteúdo de vídeos online pode causar a crianças. Abuso sexual, sequestro, assassinato, tráfico de crianças e outros crimes: nada disso é ficção. Isso talvez explique uma onda de pânico e de certa histeria observada no ambiente digital brasileiro na última semana.
Convém primeiro entender o caso.
Boatos que tiveram origem no Reino Unido, em fevereiro, diziam que inserções de imagens assustadoras haviam sido feitas em vídeos infantis populares, como Peppa Pig e Baby Shark. Elas traziam a imagem da já famosa escultura japonesa Momo e ensinavam crianças a se suicidar cortando os pulsos.
A personagem Momo vem assustando não exatamente as crianças, mas o adultos, e isso não é de hoje.
Em 2018, surgiram lendas urbanas segundo as quais a figura macabra que aparece na foto telefonava para pessoas e adicionar seu número ao WhatsApp geraria consequências literalmente fatais. Surgiram memes de todos os tipos relacionados ao “Desafio da Momo”, também relacionado ao incentivo ao suicídio.
A Momo é, na verdade, uma escultura criada em 2016 pelo artista japonês Keisuke Aiso e estava exposta na Galeria Vanilla, em Tóquio. Não está mais porque, ao ver a forma como sua criação foi resignificada na internet, o autor tomou uma decisão radical e a jogou no lixo.
A Momo voltou à cena não mais como a estrela principal de uma lenda urbana, mas como parte das inserções feitas em vídeo. O caso ganhou notoriedade no Brasil a partir de uma reportagem publicada no dia 18 de março pela revista Crescer.
A reportagem traz relatos de uma professora que diz que sua filha ficou assustada ao se deparar com a inserção. E relata que soube via WhatsApp que essa onda já estava acontecendo no mundo todo.
Na verdade, a onda em outros países havia passado antes mesmo de chegar ao Brasil. Uma reportagem do espanhol El País explica como surgiu o “bulo” (boato) sobre Momo e o suicídio infantil. Detalhe: a reportagem foi publicada em 28 de fevereiro, quase três semanas antes da matéria na Crescer.
Ainda assim, a onda de pânico rapidamente se espalhou pelos grupos de WhatsApp, Intagram, Twitter e Facebook. O mais grave da história é que, supostamente, a mensagem assustadora vinha inserida em vídeos oficiais, vistos por milhões — ou bilhões — de vezes no YouTube Kids, a versã da plataforma de vídeo para usuários de até 13 anos.
Isso levou o YouTube a se manifestar, afirmando, no dia 18 de março, que o vídeo jamais foi encontrado na plataforma infantil.
“Depois de muita análise, não vimos nenhuma evidência recente de vídeos promovendo o Desafio Momo no YouTube. Vídeos incentivando desafios prejudiciais e perigosos são claramente contra nossas políticas, incluindo o desafio Momo. Apesar dos relatos da imprensa sobre esse desafio, não tivemos links recentes sinalizados ou compartilhados conosco do YouTube que violem nossas Diretrizes da comunidade.”
O comunicado foi publicado também no Twitter.
Sobre o desafio Momo: não encontramos nenhum vídeo que promova um desafio Momo no #YouTubeKids. Qualquer conteúdo que promova atos nocivos ou perigos é proibido no YouTube. Se encontrar algo parecido, denuncie.7.79920:28 – 15 de mar de 2019Informações e privacidade no Twitter Ads2.186 pessoas estão falando sobre isso
Que conclusão tirar?
Existem duas possíveis versões extremas para o caso. Uma dá conta de que a mensagem macabra foi inserida nos vídeos de grande popularidade no YouTube e, por isso, alcançou um número enorme de crianças. Não é verdade. Seria tecnicamente impossível fazer essa inserção, ainda mais numa situação em que o próprio YouTube está vigiando esses vídeos graças à viralização do caso.
O outro extremo é o de que as inserções nunca existiram e que houve uma espécie de alucinação coletiva que afeta pais assustados. Também não é uma versão crível.
É mais factível acreditar que essas inserções tenham sido feitas em cópias dos vídeos infantis, que acabam sendo acessados por crianças antes de serem denunciados e removidos das plataformas onde existem.
E aí entra um outro elemento, que é um efeito perverso dos algoritmos. Com o aumento das buscas por um determinado conteúdo, é maior a probabilidade de alguém se deparar com ele.
O bloqueio do vídeo acaba acontecendo, mas ele não bloqueia o compartilhamento. Pais que, assustados, compartilharam o vídeo ou prints dele em redes sociais e via WhatsApp acabaram levando a mensagem para além do alcance do bloqueio no YouTube. E aí o efeito viral acontece.
O fato é que boatos como a Momo não procuram as crianças, mas os pais delas, perdidos com tudo o que é ligado à tecnologia, às redes e aos games. Eles são muitas vezes incapazes de compreender o que está por trás de serviços online. De outro lado, o responsável por essa iniciativa está conseguindo seu palanque. Vê sua criação ser espalhada, dentro ou fora do YouTube, graças ao medo (genuíno) por trás. Uma multidão gritando “é o lobo”. E mesmo sendo uma invenção, agora ele já existe.
A preocupação dos pais é compreensível, mas o melhor a fazer, dizem especialistas, é parar de repassar esses vídeos em grupos de WhatsApp e de publicá-los no Facebook e no YouTube. Os vídeos existem, mas os pais acabam colaborando para a sua divulgação.
O que se sugere: não agir por impulso. Compartilhar significa ser instrumento de propagação do medo. Quando agimos por impulso, o que era uma tentativa boa sai pela culatra. O mais importante é pensar antes de compartilhar e pesquisar.
É importante saber que existem coisas como o meme que estimula o suicídio, ou os fóruns da deepweb, que reúne potenciais autores de ataques. Mas quanto mais gente os conhece, maior o número de potenciais usuários.
Outra questão: crianças não podem navegar pela internet desassistidas. Há pais que não fazem ideia do que os filhos fazem na rede. O YouTube Kids não é nada inofensivo. Sem controle parental devido, crianças podem assistir a filminhos muito coloridos e persuasivos por longas horas. É a busca pela visualização fácil. Mesmo personagens famosos viram mashups em contas aleatórias.
Se existe um lado bom dessa polêmica, é o fato de que alguns pais ficarem mais alertas sobre o uso da tecnologia por crianças sem monitoramento.
Podcast-se
O tema deste post foi discutido na edição #99 do Podcast-se, que você ouve abaixo.