Afinal, podcasters podem usar livremente música em seus programas ou precisam pagar direitos autorais por isso? Essa é uma dúvida comum entre quem produz conteúdo em áudio. Muitos recorrem a listas gratuitas, como o YouTube Audio Library, mas outros podcasts usam músicas comerciais.
Nas edições #196 e #197 do Podcast-se — o podcast do Comunique-se —, entrevistamos o advogado Jean Caristina, especializado em Direito e Mídia, autor do site Intervalo Legal e do podcast Consumo e Mercado. Ele explica os aspectos relacionados a uso de música em podcasts.
Você pode ouvir abaixo a entrevista, dividida em dois episódios, que foram ao ar em março de 2020, ou ler o resumo da conversa dos dois capítulos mais abaixo.
Cassio Politi: Veja se eu estou certo ao repetir o que já ouvi. Teoricamente, você não pode tocar música nenhuma em podcasts a não ser que você tenha criado a música. Ou que você tenha autorização dos detentores dos direitos autorais para tocar aquela música. O mesmo vale para vinhetas. É isso ou estou falando bobagem?
Jean Caristina: A rigor, seria isso, sim. Está perfeito, mas você falou da ponta do iceberg, que é o seguinte: “quero tocar uma música do Queen”. Você tem autorização dos herdeiros? Sim ou não? Só que há muito mais do que isso. Há as músicas que são de domínio público, as que você pode utilizar livremente, as que você pode usar desde que faça menção. Mais do que isso, há músicas que você pode usar sem pagar. Tem de tudo que você puder imaginar.
Não é tão simples quanto um código binário do tipo “posso usar ou não posso”. Depende de quem, de como, de onde e de se ela está sendo utilizada para o público. São tantos questionamentos que todo o mundo fala “pô, ECAD é uma caixa-preta”. Não é. A questão é que você precisa realmente fazer todo esse questionamento antes de chegar a uma conclusão.
Cassio Politi: Falando especificamente de conteúdo editorial, sem entrar nos conceitos de publicidade, para quem faz conteúdo informativo, como um podcast igual a este, qual é a situação de maior risco dentre todas as que você colocou?
Jean Caristina: A lei do direito autoral, que é a 9.610, é grande, cansativa de se ler, e tem uma redação bem complexa. Mas o artigo 68 diz que se considera “execução pública a utilização de composições musicais mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais em locais de frequência coletiva por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade e a exibição cinematográfica”.
Traduzindo: colocou música para o mundo, é execução coletiva.
Então, se quem está ouvindo é você na sua casa ou na festinha de aniversário no salão do seu prédio, não precisa pagar nada. Se é na festa de casamento, há uma dúvida horrorosa, e tem curiosamente um monte de processo no Judiciário de gente que foi casar e o DJ foi obrigado a pagar a taxa ao ECAD. Mas não teria de pagar porque não é execução coletiva. É execução no âmbito privado de uma festa da família.
Já aquilo que sai das paredes ali do ambiente doméstico ou privado, extravasa e vai mundo afora por qualquer meio, seja um carro de som, um tablado numa praça ou uma rádio, aí já é execução coletiva. Porque você já não sabe quem está ouvindo. A radiodifusão significa que a difusão do som pode chegar a qualquer um que esteja passando por ali. No caso do podcast, qualquer um que conectar pode ouvir. Então, é execução pública coletiva.
Quando a gente vai para a área de Comunicação, normalmente há finalidade econômica. Essa história de que “não cobro nada pelo meu podcast” ou “não monetizo, portanto é de graça e posso usar a música” não é verdade. Se eu colocar um tablado em praça pública, pegar uma viola e começar a tocar músicas de autores conhecidos, é execução pública coletiva, é de graça e eu tenho de pagar. Por quê? Porque o artigo 5º da Constituição estabelece como um dos direitos fundamentais do indivíduo o direito à propriedade. E a música é propriedade fixa e intangível. Isto significa que uma vez que você produz uma música, ela vai pertencer a quem a produziu para sempre. Para eu poder utilizar a propriedade de alguém, eu parto do pressuposto de que eu tenho de pagar. Mas parece que, no Brasil, não é preciso pagar. Isso está errado.
Você não entra no estacionamento, pega qualquer carro e sai dirigindo. Porque aquele carro é propriedade de alguém. Se o dono do carro emprestar a você, ok. Mas se ele disser que só se pode usar pagando, você tem de pagar. Então, no Brasil, acostumou-se com a ideia de que música é livre porque está aí no Spotify, no Deezer, no Google. Assim como, imagens e textos, as músicas são propriedades fixas e intangíveis. Portanto, o autor dessa propriedade precisa receber os direitos correspondentes a ela.
Cassio Politi: Já me falaram que é um mito a coisa dos dez segundos, que isso é bobagem. A gente sempre ouve falar do pequeno trecho e do uso esporádico. Uma coisa é você usar a mesma música na abertura em todos os programas. Outra coisa é tocar aquela música uma vez apenas. O que exatamente diz a lei nesse sentido?
Jean Caristina: Quando a gente fala dos segundos, a gente está se referindo ao YouTube. Lá na política de utilização do YouTube, existe, sim, a possibilidade de você utilizar uma música por tantos segundos. Isso significa que eu não devo pagar direitos autorais? Não.
Cassio Politi: Na verdade, esse mito dos dez segundos e do pequeno trecho são bem mais velhos que o YouTube. Quando trabalhava em rádio, nos anos 1990, já se falava que tocar dez segundos era permitido para ilustrar alguma coisa.
Jean Caristina: Se eu assobiar aquele som da mensagem do WhatsApp, que dura dois ou três segundos, todo o mundo sabe que se refere ao WhatsApp. Pertence a quem? Ao WhatsApp — ou ao seu proprietário, que é o Facebook. É lenda a história do 1, 10, 20, 30 segundos.
Essa história de “vou colocar uma música de autoria conhecida e, quando der nove segundos, eu corto para fugir do ECAD” não funciona. Voltando ao exemplo, pegar o carro de uma outra pessoa e dar uma volta no quarteirão ou ir de São Paulo até Santos e voltar, não importa o trecho, não é sua propriedade.
Talvez no passado, utilizava-se a música de forma mais rápida para fugir da fiscalização. Mas hoje o ECAD tem robôs na internet e nas rádios localizando onde estão sendo transmitidas essas músicas. Portanto, não adianta, o ECAD vai achar o trecho curto do mesmo jeito.
Cassio Politi: Estamos falando bastante do ECAD, mas uma pergunta é pertinente. Quem exatamente é o ECAD? Que figura misteriosa é essa?
Jean Caristina: O ECAD é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Ele existe só para isso: arrecadar e distribuir para as associações. Não é um órgão público. É uma entidade privada formada por diversas associações de músicos, compositores, intérpretes.
Vamos imaginar que você compõe uma música e que essa música é colocada no YouTube. Daí você passa o link aos amigos pelo WhatsApp e alguém começa a usar essa música. Isso significa que essa pessoa já terá de pagar ao ECAD? Não. Somente as músicas que são registradas com o ISRC, que é um código equivalente ao ISBN dos livros.
Se o autor e o compositor da música forem associados a uma dessas associações que compõem o ECAD, ao identificar que essa música foi tocada, o ECAD faz a cobrança. Ele faz a identificação por denúncia do próprio ECAD ou da própria rádio, que diz “eu utilizei a música.”
Daí, então, o valor correspondente ao recolhimento é enviado ao autor. E é enviado mesmo. Mensalmente, os artistas recebem uma relação de todas as execuções daquela música em todos os lugares que o ECAD conseguiu alcançar.
Tem dois tipos de fiscalização. Uma é a que o ECAD faz. Ele vai até o local e fiscaliza. E às vezes chega a ser até um pouco truculento. Eu tenho vários exemplos de amigos que expulsaram fiscais do ECAD até de quermesse de igreja.
E a segunda forma é a autodenúncia. Por exemplo, a casa noturna vai receber uma banda e pede a ela que envie previamente a relação das músicas que vai tocar numa determinada festa pública. Ele paga o valor proporcional às músicas que foram tocadas. Às vezes, o valor é irrisório. São centavos. Mas o artista recebe.
Do valor que é pago, uma parcela muito pequena fica retida para o ECAD. Todo o restante é distribuído para as associações. A rigor, é o salário do músico. Principalmente para o compositor, que não é o cara que faz show e que não está na grande mídia, esse valor é importante porque é a remuneração dele.
Cassio Politi: E no caso de música internacional?
Jean Caristina: Também existe associação que cuida só dos direitos relativos a autores internacionais. Existem associações que têm ponte fora do País. É recolhido aqui e enviado para o autor estrangeiro. Há o produtor e o distribuidor aqui. Existem os direitos conexos. Não apenas o direito do autor da música, mas o direito de toda a cadeia de produção: compositor, músico, distribuidor. Todos eles recebem essa taxa.
Partindo já para o nosso grande problema, que é o podcast, eu tenho visto muita gente caindo no conto do vigário. Os podcasters teoricamente têm uma associação de podcasters…
Cassio Politi: É a ABPOD, que, com todo o respeito e cuidado do que vou dizer aqui, deixa a sensação que vai e volta. Ela se forma, depois se desfaz, ganha grupo político, perde grupo político. É uma associação que nunca realmente se compõe.
Jean Caristina: A ABPOD lá, no passado, disse ao mercado ter celebrado um acordo de cavalheiros com o ECAD. Bem… eu sou advogado. Acordo de cavalheiros entre uma associação representativa de podcasters e uma entidade responsável por cobrar taxa, me desculpe, não pode ser um acordo de cavalheiros. Ou a coisa está documentada ou não está. Aí disseram — e espalhou-se essa notícia — que havia um acordo de cavalheiros. Na dúvida, isso não existe.
Cassio Politi: Esse alerta que você está dando é muito oportuno. Eu nunca soube desse acordo. Eu cheguei a compor uma diretoria informal da ABPOD. Quando o Luciano Pires, do Café Brasil, deixou essa diretoria que estava se formando, eu saí solidariamente junto com ele. Porque eu estava lá por ele. Então, se um dia foi feito algum tipo de acordo, ele já está desfeito porque as pessoas que lá estavam já saíram. E naquele momento que esse possível acordo foi feito, o Luciano Pires, que era o presidente de honra da ABPOD, pagava o ECAD. Ele próprio não confiava no acordo.
Aliás, numa palestra da própria ABPOD, o Luciano mesmo disse algo que eu gostaria de perguntar a você. Segundo o advogado dele, pagar o ECAD não é garantia nenhuma de que você vá se livrar de um processo nem de ter que pagar direitos autorais. É, no máximo, uma indicação de boa fé de que você não quer ferir direitos autorais. É isso mesmo?
Jean Caristina: Exatamente. Existe uma classificação. Confesso que eu já li diversas vezes e não consigo entender. Porque depende da autodeclaração do podcast. Fiz uma consulta ao ECAD. Para as perguntas que eu fiz, eles me responderam com duas linhas: “você precisa recolher por se tratar de direito autoral”. Para obter essa resposta, eu não precisaria nem ter perguntado.
No site deles, recentemente atualizado, há a informação de que, se você é um podcast de música, a taxa é uma. Se o seu podcast é de entretenimento geral, são 5 UDAs. Cada UDA é cerca de R$ 80,00.
Já se você for um site comercial que tem conteúdo de entretenimento, você paga 2,4% da sua receita bruta e no mínimo 25 UDAs.
Aí fica a dúvida: são 2,4% sobre a receita bruta do quê? No caso do Podcast-se, é a receita bruta do podcast ou do Comunique-se? No caso do G1, é a receita gerada pelo podcast, do G1 ou da Globo?
Na página do ECAD, eles mencionam “podcast pequeno”. Mas que diabo é “pequeno”? No Direito, somos um pouco chatos em relação a essas expressões que não têm definição. Quando não tem definição, definido está. Então, quando você me fala que o Luciano Pires pagava, mas ele falava que isso não é garantia nenhuma de que está dentro da lei, mas está me isentando de violação completa de direitos autorais, é justamente por isso. Porque amanhã alguém vai virar e falar: “olha, Luciano, desculpa, o seu enquadramento é outro. Você estava recolhendo só R$ 800,00 quando, na verdade, você tinha de recolher, sei lá, R$ 5.000,00 mil”.
O ato de pagar demonstra uma boa intenção, mas não significa que você se isentou de pagar efetivamente o que você deve dentro do enquadramento normativo que é estabelecido pelo ECAD. Essa tem sido a grande confusão. E o Judiciário tem tido um bom posicionamento a respeito disso. Tem vários julgados pipocando pelo País de muitas questões relativas a pagamento indevido ou pagamento desproporcional de taxa imposta pelo ECAD em que, no caso, o condenado — o autor da ação — consegue a redução e a proporcionalidade dessa taxa porque nem todo mundo é o G1. Nem todo o mundo tem uma receita para pagar R$ 5 mil de taxa de ECAD.
Cassio Politi: No extremo, se for para a Justiça, fiquei pensando se não seria o caso de recomendar uma saída para quem está nos ouvindo. Você deu o exemplo de uma casa noturna que paga centavos pelo baixo número de exibições e de ouvintes. Eu não posso fazer o mesmo? Chegar na frente do juiz e dizer: “está aqui, aferido pelo Spotify, Spreaker ou Anchor: este podcast foi tocado apenas 200 vezes”. Eu tenho como provar que só 200 pessoas ouviram aquela música. Ainda assim, eu fui lá na ECAD, e paguei na maior boa-fé, pressupondo que mais gente fosse ouvir. Se eu tomasse a iniciativa de autodenúncia igual à da casa noturna, eu deveria pagar centavos. Portanto, eu também tenho como me defender com números, não?
Jean Caristina: Completamente. A prova, neste caso, é sempre de quem reproduz a música. A gente estava falando aqui do caso da quermesse.
Curiosamente, o maior caso de briga no ECAD, que foi parar no STJ, foi de utilização de música em festa junina em escola. A justiça decidiu que esse tipo de exibição, além de não ser pública, além de não ser coletiva, é cultural. É música da nossa cultura. É música folclórica. E isentou esse pessoal de pagar a taxa ao ECAD. Tem várias pessoas que estão pagando, tem várias pessoas que não estão pagando. As que estão pagando, andam pagando mais do que devem. Das que não estão pagando, muitas gostariam de pagar, mas não sabem como nem quanto.
Essa bagunça se deve justamente ao fato de não haver norma clara. Enquanto eles tentarem cobrar de todo o mundo indiscriminadamente, sem fazer questionamentos se você deve ou não deve pagar, as pessoas, em vez de pagar, tendem a fugir do pagamento. Então, a prova é sempre sua.
Se você exibir um áudio, e a música está dentro do seu podcast seja para 8 mil pessoas ou para oito pessoas, a prova é sua. Mas eles não vão ter condição de definir quantas vezes foi exibido. Você vai ter de provar. Mas como você vai provar? Depois de ter tomado a multa.
Muitas vezes você recebe a cobrança de R$ 7 mil e diz: “Espera aí, eu exibi só para oito pessoas”. Como eles não conseguem definir o tamanho do seu site ou do seu podcast, a prova acaba sendo sua. Você acaba carregando esse ônus de fazer a sua defesa desde o início. Então, na melhor e na pior das hipóteses, é importante sempre ter registro do quanto foi exibido, registro de faturamento, notas pagas e tudo mais. Porque, na hora em que vier, você é que vai ter de fazer a sua defesa. Não espere que o ECAD consiga ter esse discernimento.